Online e offline: um dualismo obsoleto

Falamos – felizmente – cada vez mais sobre violência online contra mulheres e raparigas. Conhecemos cada vez melhor os contornos e a prevalência da violência online e das suas múltiplas formas, como o cyberbullying, o assédio online e o discurso de ódio misógino. Em particular, a violência sexual com base em imagens (VSBI) é alvo crescente de atenção mediática e discussão política – ainda que, com frequência, designada como “pornografia de vingança”.  

No entanto, o pleno reconhecimento destas formas de violência e da sua magnitude ainda tarda. Tendemos, ainda, a tratar o digital como “menos real”, restrito a uma dimensão virtual ou secundária, e a assumir que a violência sexual implica, necessária ou maioritariamente, violência física. Pensamos o offline e o online como dimensões demarcadas – e hierarquizadas.

A violência sexual com base em imagens (VSBI) revela como a dualidade online/offline, ou a fronteira entre mundo real e virtual, é obsoleta. Abordar a violência sexual na era digital implica reconhecer a interligação complexa entre online e offline: tal como há diversas formas de comunicação e interação sexual que não requerem o contacto corpo a corpo (como o sexting e o cibersexo), também a violência sexual não implica, necessariamente, a agressão física direta – o que não quer dizer que seja uma violência menor, menos grave e efetiva.

Um estudo transnacional recentemente publicado, que inclui 75 entrevistas com vítimas-sobreviventes (na esmagadora maioria mulheres: 89% do total de participantes) em diferentes contextos anglosaxónicos – Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia – oferece um contributo importante para o conhecimento sobre a violência sexual com base em imagens. A maioria das situações reportadas pelas/os participantes no estudo refere-se à divulgação de imagens de nudez ou de cariz sexual, e inclui casos em que as vítimas-sobreviventes tinham inicialmente partilhado as imagens com alguém, de forma consensual; casos em que tinham sido fotografadas/os por outros, e ainda situações em que desconheciam ter sido fotografadas ou filmadas (por exemplo, em contextos de consumo de álcool ou drogas, quando se encontravam a dormir, ou com recurso a uma câmara oculta). Várias/os entrevistadas/os descreveram situações de ameaça e controlo coercivo com recurso às imagens íntimas (por exemplo, terem sido chantageadas/os com a divulgação das imagens caso não cedessem à prática coagida de atos sexuais ou ao pagamento de uma quantia monetária).

As experiências e os impactos da violência sexual com base em imagens não é homogénea, e importa reconhecer essa diversidade. No entanto, o estudo aponta para padrões discursivos no que toca aos efeitos e consequências da VSBI: “É tortura para a alma”, nas palavras de uma entrevistada. Jovens mulheres descreveram o isolamento sofrido, a perda de confiança nos amigos e conhecidos e a quebra dos vínculos relacionais. Várias/os entrevistadas/os descreveram a divulgação (ou ameaça de partilha) das imagens íntimas como uma forma de violência e ameaça permanente, continua e incessante. Diversas/os participantes relataram como a ameaça de divulgação de imagens íntimas as/os deixou hipervigilantes, num estado de medo constante, aliado à percepção de falta de controlo, à sensação de impotência e à consciência de que a qualquer momento as imagens ou vídeos íntimos poderiam ser (ou tornar a ser) partilhados.

Estes relatos apontam para a insuficiência da divisão entre online e offline: várias pessoas entrevistadas descreveram como os efeitos sentidos tiveram plena expressão enquanto sujeitos, afetando a sua integridade física, a sua relação com o corpo e a sua autoimagem.

O reconhecimento da VSBI é imprescindível para que sejam desenhados, implementados e efetivados recursos de apoio a vítimas-sobreviventes. No entanto, os mecanismos legais são frequentementes insuficientes e impreparados para responder à violência sexual facilitada ou mediada por dispositivos digitais. Neste sentido, as investigadoras australianas Nicola Henry e Anastasia Powell propuseram o conceito de embodied harms (“danos corporalizados”, em tradução livre), para sublinhar como a violência sexual facilitada por tecnologias digitais pode afetar o bem-estar psíquico e físico das vítimas-sobreviventes, mesmo quando o corpo não é – imediata e diretamente – agredido.

É urgente reconhecer a VSBI e todas as formas de violência online contra as mulheres e raparigas. Porque o corpo não está ausente nem é imune as estas formas de violência. Não somos avatares: somos pessoas, inteiras, em todos os contextos. Cada sujeito, cada pessoa, é (também) um corpo: habita e experiencia o mundo porque tem um corpo. Não são imagens e vídeos os alvos da violência: somos nós, a nossa segurança e autonomia sexual.

A violência sexual com base em imagens não é menos real. A liberdade e autonomia sexual das mulheres implica o combate a todas as formas de violência, em todos os contextos: a internet não pode continuar a ser, como afirma o Lobby Europeu das Mulheres, um espaço de violência genderizada.

As mulheres e raparigas têm direito ao espaço público, e isso inclui o espaço digital.

Maria João Faustino, Gestora do Projeto “Faz Delete” da Rede de Jovens para a Igualdade

Este projeto é financiado pelo  Programa Cidadãos Ativ@s