Defender a tipificação da VSBI: crime público e crime autónomo

Portugal demonstra-se incapaz de lidar com a violência sexual com base em imagens contra as mulheres e raparigas. Estamos a viver numa era extremamente digital onde esta falta de legislação em relação à Violência Sexual com Base em Imagens confere impunidade a agressores e perpetua a continuidade desta violência contra nós, jovens e mulheres!

Estamos por isso a mobilizar jovens mulheres e exigir a tipificação deste tipo de violência como um crime autónomo e público no ordenamento jurídico português através de uma petição pública

Até ao momento, a penalização pela prática de crimes de partilha de conteúdo sexual equipara-se à partilha de um e-mail, pelo código penal português. É necessário que exista uma condenação pelo Estado contra a Violência Sexual com Base em Imagens e para tal é crucial nomear e reconhecer que a partilha e captura deste tipo de conteúdo é um crime e exige ser penalizado como tal, de forma a que seja mais autônomo identificar e denunciar este tipo de violência. 

A tipificação deste tipo de violência facilita a percepção das suas várias formas que muitas vezes estão `’escondidas”, enfatizando o impacto que a partilha deste tipo de conteúdo pode ter nas vítimas. É, também, uma forma de estabelecer socialmente que é inaceitável existir impunidade para com os agressores e que a prática desta forma de violência sexual é intolerável.

Como é que a violência sexual com base em imagens é considerada noutros países?

A par do que se verifica em Portugal, as questões do Cybercrime têm vindo a ser alvos de debate por vários países da Europa. Desde março de 2020 que se assiste a um aumento significativo de casos reportados de partilha não consentida de fotografias ou vídeos íntimos nos meios digitais. São inúmeras as vítimas que lidam em silêncio com este tipo de violência, e sofrem com a exposição de que foram alvo por parte de agressores exponenciados pela internet.

No entanto, em Portugal, não foi até à data efetivado, no ordenamento jurídico, uma penalização que correspondesse efetivamente à responsabilização pela prática deste tipo de violência.

Salienta-se, que a Violência Sexual com Base em Imagens pode estar relacionada com outro tipo de violências, como a violência doméstica e a violência no namoro, sendo de extrema importância destacar o caractér abusivo e a forma danosa como marca as sobreviventes.

Têm sido tomadas algumas medidas de penalização jurídica no contexto de Violência Sexual com Base em Imagens, por diversos países da Europa:

  • Em 2015 foi promulgada, na Inglaterra e no País de Gales, uma lei que penaliza como crime a partilha não consentida de fotografias ou vídeos de cariz sexual. Assim, passou a existir uma sentença específica para este tipo de crime que condena os agressores até 2 anos de prisão.
  • Em 2016, a França adotou a lei The Digital Republic que aplica sanções para todas as pessoas que tirem ou partilhem fotografias ou vídeos de cariz sexual, sem consentimento dos intervenientes. De acordo com esta legislação, os perpetradores enfrentam uma pena de 2 anos de prisão ou uma multa de 60.000€
  • Também na Alemanha, os crimes de VBSI são considerados como violência a ser expressa e penalizada pelo código penal, sendo regulamentada como uma violação da área altamente pessoal da vida e dos direitos pessoais. A penalização, tal como no Reino Unido e na França, passa por uma pena de 2 anos de prisão ou numa multa, que prescrevem 5 anos após a sua prática. As vítimas deste tipo de violência podem apresentar uma queixa-crime que dá início a um processo criminal contra o agressor, ou envergar por uma ação civil direta contra ele e exigir que os conteúdos partilhados sejam retirados da internet. As vítimas podem, ainda, requerer uma indemnização pelo impacto psicológico e emocional causado por este tipo de violência.

Em Itália, a VBSI foi apenas legislada em 2019.  De acordo com o artigo 612 do código penal Italiano, são punidas todas as pessoas que, após realizarem ou roubarem, enviem, entreguem, transfiram, publiquem e divulguem imagens ou vídeos com conteúdo sexualmente explícito, destinados a ser mantidos em privacidade, sem o consentimento dos intervenientes, com prisão de 1 a 6 anos e multa entre os € 5.000 e € 15.000. A mesma pena é aplicada a quem não os tenha realizado mas participe na divulgação destes conteúdos. A penalização é agravada se os crimes forem realizados pelos cônjuges. A pena é aumentada de um terço a metade se os atos forem praticados em prejuízo de pessoa em condição de inferioridade física ou mental ou contra uma mulher grávida. O prazo para apresentar a denúncia é de 6 meses. A remissão da reclamação só pode ser processual. No entanto, é feito ex officio nos casos referidos no n.º 4, bem como quando o facto estiver relacionado com outro crime pelo qual se deva proceder ex officio.

E em Portugal?

No contexto português, a maioria das expressões de VSBI não se enquadram no âmbito dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.

Ora se analisarmos cada uma das formas de violência sexual com base em imagens reconhecidas pelo GREVIO, são várias as condutas que não têm um enquadramento adequado no ordenamento jurídico português.

Começando pela partilha não consentida de imagens de nudez ou de imagens sexualizadas, esta conduta é enquadrada como crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo artigo 192º do Código Penal, com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 240 dias.

A 14 de Outubro de 2022, foi aprovado (7) na generalidade o Projeto de Lei 347/XV/1 que vem alargar a moldura penal abstrata do crime de devassa da vida privada até 3 anos ou pena de multa até 340 dias. A mesma proposta veio ainda aditar o número 3º ao artigo 192º: “​​3. Quem, sem consentimento, disseminar ou contribuir para a disseminação, através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, de fotografias ou gravações que devassem a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual, é punido com pena de prisão até 5 anos.”

Com esta alteração legislativa verificamos um claro avanço na proteção das vítimas-sobreviventes de violência sexual com base em imagens. Com o aumento da medida da pena, a tentativa passa a ser punível, o que anteriormente não se verificava, por força do artigo 23º nº 1 do CP, já que esta só é punível se ao crime consumado couber pena superior a três anos de prisão.

Será de apontar que o crime de devassa da vida privada protege os bens jurídicos relacionados com a privacidade e a intimidade. Contudo, a violência sexual com base em imagens vai muito mais além de ofensas à privacidade da vítima-sobrevivente, ferindo também a liberdade sexual e o livre desenvolvimente da personalidade. Com a partilha de conteúdo íntimos, é atingido o círculo mais restrito da reserva da vida privada, mas também é atingida a liberdade sexual na medida em que a disseminação de conteúdos sexualizados afeta profundamente a relação da vítima-sobrevivente com o seu corpo, a sua autoimagem e a sua identidade sexual.

A liberdade sexual traduz-se na faculdade de escolher praticar ou não atos de caráter sexual, por vontade livre da pessoa no contexto das circunstâncias envolventes e de escolher para esse fim o/a parceiro/a. Pressupõe o direito à não intromissão e à livre manifestação da sexualidade, ou seja, o direito a ditar a própria vida sexual, sem intervenção de terceiros. Assim será de considerar ofensivas deste bem jurídico pessoal as variadas condutas que se incluem na violência sexual com base em imagens, dado que violam a liberdade de dispor da imagem sexual.

No seio de uma sociedade onde o continuum de violência masculina sobre as mulheres e meninas está longe de ser eliminado, onde a maioria das vítimas de violência sexualizada online são mulheres, será insensato pensar que a partilha de imagens ou vídeos de cariz sexual afeta apenas a intimidade e a privacidade. Na verdade, a partilha não consentida de imagens sexualizadas provoca sentimentos de impotência, a sensação de perda de autonomia sexual e controle sobre o próprio corpo, bem como um sentimento de coisificação, danos que não são devidamente acautelados pelo crime de devassa da vida privada. A partilha não consentida de imagens sexualizadas tem um significado social diferente da mera devassa da intimidade da vida privada já que tem por base a relação de dominação e exploração histórica dos homens sobre as mulheres.

Em termos de direito comparado, são vários os países que criminalizaram de forma autónoma uma ou mais formas de violência sexual com base em imagens, como Inglaterra, Itália, Espanha, Malta, Israel, Canadá, entre outros. É de destacar o exemplo escocês, que criminaliza esta conduta no Abusive Behaviour and Sexual Harm Act de 2016, onde incluí não só a partilha de conteúdos íntimos mas também a ameaça. Esta ameaça é frequentemente usada para constranger a vítima a partilhar outros registos íntimos ou a praticar atos sexuais, sendo subsumível nesse caso ao crime de coação sexual previsto e punido pelo artigo 163º do Código Penal.

Também o cyberflashing merece a nossa atenção, já que é a forma de violência sexual com base em imagens mais prevalente entre as jovens dos 18 aos 25 anos, de acordo com as conclusões do estudo supra referido (Faustino et al, 2022). A prática de atos exibicionistas é prevista e punida pelo artigo 170º do Código Penal, que criminaliza a importunação sexual. O ato exibicionista é entendido como toda a actuação com significado ou conotação sexual realizada diante da vítima, assim, é o nosso entendimento que não será possível enquadrar o cyberflashing neste tipo legal de crime já que a conduta não é tida diante da vítima-sobrevivente mas online, ou seja, de forma diferida.

Relativamente a deep fakes, ao contrário do que se possa pensar, esta tecnologia é acessível e relativamente simples para um agente com conhecimentos mínimos de programação, desde que este tenha acesso a fotografias ou vídeos de outrem em número suficiente. Atualmente existem já comunidades online onde é possível comprar um vídeo deep fake, através da submissão de fotografias e vídeos de mulheres e meninas.

Esta conduta é violadora dos bens jurídicos, reserva da vida privada, imagem, liberdade sexual, identidade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade. Atualmente, a captação, produção ou aquisição não consentida de imagens ou vídeos íntimos pode ser enquadrada no ordenamento jurídico português no artigo 199º do Código Penal, que prevê uma moldura penal abstrata de pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 240 dias, como tal, a tentativa não será, desde já, punível.

Mais uma vez, este preceito não foi pensado para proteger a liberdade sexual, tão só o direito à imagem. Assim, a medida abstrata da pena não é adequada à proteção dos bens jurídicos em causa quando há lugar à produção de deep fakes, à gravação com recurso a câmaras ocultas, por exemplo numa casa de banho ou balneário, à captação de fotografias debaixo da roupa, o chamado upskirting, ou até mesmo ao registo de atos de violência sexual.

Assim, apesar da violência sexual com base em imagens poder abranger comportamentos já criminalizados em diversos tipos legais de crime, esta deve ser autonomizada para refletir a componente inapagável da violência sexual contra as mulheres. Ademais, importa referir que os tipos legais elencados ao longo desta exposição são crimes semi-públicos, logo, “dependem de queixa do ofendido ou de outras entidades que tenham obrigação legal em dar conhecimento ao Ministério Público do facto” (art. 49º CPP, art. 192 e 198 CP).

Tal indica que não parece existir formalmente, nem a nível legislativo nem a nível de políticas públicas, compromissos com o combate e prevenção da VSBI por parte do Estado Português, exceto a ratificação da Convenção de Istambul. Embora a Recomendação Geral nº.1 não tenha um carácter vinculativo, constitui-se como uma orientação clara para as Partes da Convenção.

O que propomos

A violência sexual com base em imagens deve ser tipificada como crime contra a liberdade sexual, de natureza pública, nas suas múltiplas manifestações como a captação não consentida, a partilha não consentida e a ameaça de partilha. A autonomização do crime de violência sexual com base em imagens, além de transmitir uma mensagens de reprovação social desta conduta e de permitir às vítimas-sobreviventes identificar e nomear claramente os seus direitos lesados, permitiria também a atribuição de natureza pública a esse tipo legal.

Apesar da atribuição de natureza semi-pública aos crimes de devassa da vida privada (artigo 192º CP) e gravações e fotografias ilícitas (199º) ser justificada tendo em conta os interesses tutelados, quando se procura enquadrar nestes crimes condutas que constituem violência sexual com base em imagens, ou seja, que ferem a liberdade sexual, a natureza semi-pública não será, no nosso entendimento, a mais adequada.

Estando as diversas formas de agressão sexual masculina envoltas num manto de silêncio e culpabilização das vítimas-sobreviventes, tornar os crimes sexuais em geral, e a violência sexual com base em imagens em particular, crimes-públicos, vem retirar a violência sexual da esfera privada, onde tem permanecido invisível e impedir que as vítimas-sobreviventes sejam coagidas a não denunciar. Ademais, tendo em conta que a VSBI inclui a divulgação de conteúdos online a que as pessoas visadas podem não ter acesso, apenas a sua consagração como crime-público permitirá quebrar a impunidade dos agressores e garantir a proteção efetiva das vítimas-sobreviventes.

A natureza de ultima ratio do Direito Penal tem sido sistematicamente usada para impedir a criminalização de comportamentos atentatórios dos direitos das mulheres. Isto é sintomático de um sistema de justiça que se estabelece no seio de uma sociedade patriarcal onde os corpos das mulheres e raparigas continuam a ser entendidos como domínio público, de acesso livre em prol da satisfação dos desejos sexuais masculinos. A tipificação da violência sexual com base em imagens de forma autónoma, enquadrada nos crimes contra a liberdade sexual está em linha com a ideia de quebra ou falta de consentimento que subjaz a estes crimes.

A criminalização de todos os atos sexuais não consentidos é exigência da Convenção de Istambul, normativo face ao qual o Estado Português continua em incumprimento ao exigir recurso aos meios típicos de constrangimento, tal como defendido pelo GREVIO no relatório sobre a situação de Portugal quanto à implementação da Convenção.

Propõe-se, pelos motivos acima explanados, que o Estado Português tipifique a violência sexual com base em imagens como um crime autónomo e público, enquadrado no Capítulo V, Secção I, dos Crimes contra a liberdade sexual do Código Penal.