Entrevista – Mariana Fernandes

As redes sociais avançaram mais rapidamente do que a capacidade legal para fazer justiça”

Mariana Fernandes, de 31 anos, criou o Movimento Corta a Corrente (@cortaacorrente) em 2020 com o objetivo de sensibilizar a população acerca das consequências da partilha não consentida de fotografias íntimas com nudez e/ou conteúdo sexual a terceiros ou plataformas. No âmbito desse projeto, traduziu artigos científicos que confirmam as consequências para as vítimas, maioritariamente mulheres, e criou petições na Assembleia da República que visam mitigar e responder a este tipo de crimes. A primeira petição (entretanto arquivada) pedia a autonomização do crime da “pornografia não consentida”, e reuniu assinaturas suficientes para ser discutida na Assembleia da República. A segunda petição, ainda em curso, discute a responsabilidade das plataformas online na partilha de conteúdos íntimos. É membro da Associação Não Partilhes.

Nesta entrevista, falámos sobre os objetivos do Corta a Corrente, as petições levadas a cabo e a responsabilidade das plataformas digitais no contexto da violência sexual online.

Como surgiu o Corta a Corrente? Qual a missão e objetivos?

O Corta a Corrente nasceu um bocadinho sem grandes preparações e planos. O contexto foi o de uma divulgação [de vídeo íntimo, sem consentimento], em 2020. Fazia-me confusão a partilha passiva deste tipo de imagens, completamente acrítica, sem qualquer tipo de reflexão. E fiz um conjunto de slides, e na altura umas amigas disseram-me “põe na tua página de Instagram”.

Criei a página [Instagram] do Corta a Corrente, precisamente pela ideia de que a pessoa passiva que recebe o conteúdo pode efetivamente cortar a corrente, pode ter noção dos danos deste tipo de comportamento e não reenviar para mais grupos. Daí o nome.

Penso que é uma estratégia muito necessária: a responsabilização dos ditos “observadores”.

Durante algum tempo foquei-me muito sobre esse assunto, a tentar sensibilizar este sujeito “passivo” que é o recetor de material [íntimo, não consentido], que pode simplesmente não partilhar, pode até falar com o emissor ou denunciar.

Penso que já toda a gente teve alguma experiência sobre este fenómeno dos grupos de Whatsapp ou outros grupos, em que estão muito frequentemente a cair fotografias de raparigas em semi-nudez ou nudez, ou em situações de intimidade sexual, em que aparecem fotos delas ou vídeos com identificação e perfis das redes sociais; em casos mais graves, moradas.

O chamado doxxing [revelação online de dados pessoais de outra pessoa].

Em casos muito sérios, [aparecem] muitas referências, o sítio onde [a vítima] trabalha, emails… tudo o que dá para identificar a pessoa.

Estiveste nesse tipo de grupos, ou amigos e conhecidos?

Pessoalmente não estive em grupos onde essas imagens circulam, mas tive sempre alguns colegas de trabalho, ou amigos, que me mostravam. A experiência que tenho é que isto ocorre mais em grupos onde a maioria são rapazes, foram esses rapazes que me mostraram.

O meu namorado também, às vezes, recebia esse tipo de conteúdo nos grupos, e já tínhamos falado sobre como é uma hipocrisia: estão constantemente a expor e a julgar as mulheres, quando a sociedade incentiva muito a que as mulheres se exponham e se tornem vulneráveis. Um exemplo muito marcante disso são as festas na Queima das Fitas, onde há sempre uma barraquinha que dá shots grátis, álcool gratuito, a raparigas que mostrem a barriga, as mamas, o rabo… E essas imagens corriam todos os grupos, as plataformas digitais, e tinham consequências para as mulheres envolvidas.

É uma sociedade que promove e censura ao mesmo tempo a nudez feminina.

Exatamente, especialmente num contexto em que as pessoas estão vulneráveis. Era um assunto que me perturbava. Por um lado, são as pessoas a incentivar que as mulheres se exponham: os namorados a pedir fotografias – ou ainda não são namorados, estão a conhecer-se e querem nudes – mas por outro lado há um julgamento [sobre as mulheres], que esta pessoa é “fácil”, “uma porca”, “não é material para namorada”.

É uma cultura muito presente, ainda na tua geração.

Muito relacionado com a nossa cultura e a religião católica, [onde] a mulher tem de ser “pura” e o homem pode ser um garanhão e até é bem visto entre os pares. Este double standard [duplo padrão] que temos é bastante injusto, e torna-se bastante cruel com o aparecimento das redes sociais, que são plataformas de milhares de utilizadores em que um só ato de bullying pode chegar a milhares de pessoas e tem uma dimensão muito maior do que no passado. Uma coisa era mandar-se uma mensagem ou tentar difamar num grupo de amigos, mas nunca escalava desta forma.

Consideras que estas plataformas vieram acrescentar uma dimensão ao sexismo que já existia?

Sim. São plataformas que, dada a sua dimensão, também têm coisas boas. É mais fácil mobilizar as pessoas: por exemplo, recolher assinaturas para petições, fazer chegar a tua mensagem a mais pessoas, mas depois também têm este lado. Já se fala muito sobre as fake news [notícias falsas], que também chegam a muita gente, mas de facto ainda se fala pouco sobre outro tipo de conteúdo que circula frequentemente neste tipo de redes e que tem consequências tão ou mais graves para as pessoas.

E a página foi crescendo: criaste o Corta a Corrente quase por impulso das amigas, e tornou-se uma coisa com muito alcance.

Penso que era um assunto que já andava a “chatear” as pessoas há algum tempo. Recebi muitas mensagens, sobretudo de mulheres, mas também de homens.

Grande parte das mulheres penso que tem muita empatia por este assunto, não só pelo número de vítimas. Nós temos a capacidade de perceber que, dado o contexto, “podia ser eu, isto podia ter-me acontecido”, “eu já confiei noutras pessoas”. Porque pode ser bastante saudável a troca de imagens ou filmes íntimos entre dois adultos, de forma consentida.

Não há nada de errado em si, em partilhar na intimidade e de forma consentida.

O que é preocupante é o poder que fica, principalmente do lado do homem, para facilmente uma situação de vingança ser muito fácil e devastadora.

Vingança ou humilhação, gozo, manifestação de poder…

Exato. E em termos legais ainda não avançámos o suficiente. As redes sociais avançaram mais rapidamente do que a capacidade legal para fazer justiça a este tipo de situações.

Tu foste a primeira subscritora de duas petições muito relevantes. Podes contar-nos mais sobre o propósito e percurso das petições?

Uma das petições pede a elevação deste tipo de crime [partilha não-consentida de conteúdos íntimos] a crime público. O crime não está tipificado e não é um crime público.

Portanto depende da própria pessoa apresentar queixa.

O próprio lesado tem de fazer queixa e só assim o Ministério Público avança com o processo. Fez-me bastante confusão a pouca dimensão que está a ser dada ao crime, parece que não está a par e passo com as consequências devastadoras que temos vindo a [conhecer] cada vez mais. Há imensos artigos que exploram a parte da saúde mental [nas vítimas]: a ansiedade, síndrome pós-traumático, depressões, tentativas de suicídio e, por vezes, suicídios. Em termos práticos, poderem perder o trabalho ou terem de mudar de sítio, ou de país.

O enquadramento penal é muito insuficiente.

A vantagem que teríamos se o crime fosse público é que talvez conseguíssemos cortar a corrente mais cedo, porque qualquer pessoa com alguma consciência para o problema que recebesse essa imagem podia fazer a denúncia e começava logo o processo. Assim tem que se esperar, e a própria vítima não tem assim tanto tempo para apresentar a queixa-crime. E a exposição já aconteceu, o facto de outra pessoa fazer a denúncia não ia aumentar mais a exposição [das vítimas].

A petição foi tendo mais assinaturas e tive a sorte de a Cristina Rodrigues, [na altura] deputada não inscrita na Assembleia da República, vir falar comigo e quis saber mais sobre este assunto.  Ela própria [apresentou] um projeto de lei em que sugere uma pena mais agravada para este tipo de crime. Fui ouvida numa Comissão e fui apresentar a petição.

A outra petição é sobre um tema menos falado ainda, a responsabilização das plataformas.

É verdade. Só há pouco tempo começou a discussão sobre a responsabilidade [das plataformas online] nas notícias falsas e implicações nas eleições. E temos um problema: as plataformas lucram mais quando o conteúdo circula mais, portanto para elas é benéfico um conteúdo ser partilhado muitas vezes.

E ser tornado viral.

E sabemos que este tipo de conteúdo [imagens de índole sexual] circula muito mais do que outra coisa banal. Portanto não é benéfico, do ponto de vista lucrativo, tomar ações que de alguma forma limitem a propagação deste tipo de conteúdos. Temos todo o lobby destas grandes empresas. E têm uma tendência de culpabilizar o utilizador final, o que é típico de instituições com grande poder privado: têm as suas políticas de conteúdos, só que a posição destas plataformas acaba por ser “nós damos as regras, mas cada utilizador é responsável por cumprir, não causar dano a outras pessoas”.

Há um argumento que normalmente é dado por quem quer defender os privados: “por exemplo, se escreves uma carta e estás a ser bully ou violento e mandares para outra pessoa, a culpa não é dos CTT”. Mas os CTT não vão abrir cada carta, e a tua carta vai chegar a uma pessoa.

Não tem paralelo: como se as redes sociais não introduzissem dinâmicas e escalas novas para a disseminação das coisas. Não é a mesma coisa enviar uma carta ou partilhar um post público. As redes sociais não são meros transmissores de conteúdo.

Exato. As plataformas tornam as coisas públicas, uma carta não é pública.

Maria João Faustino