Dia Internacional da Mulher 2022

A ditadura da beleza e de um padrão ideal continua a ser uma luta do movimento feminista.

Vivemos uma era “moderna”, uma era de novidades, de redes sociais em que, no espaço de segundos, somos capazes de receber informação do outro lado do globo. Pela velocidade que temos em ser informadas sobre tudo, pela facilidade com que podemos conhecer e falar com pessoas de todo o mundo ou por todos os confortos que surgiram com o avanço tecnológico, seria expectável que as nossas sociedades se tivessem tornado mais igualitárias, mais plurais e menos opressivas, mas a verdade é que estamos a viver um fenómeno contrário. No que concerne os direitos das mulheres e raparigas estamos a assistir a um backlash em vários domínios, e muito em particular, nas questões de estereótipos de género associados à beleza e ao corpo. 

Nós mulheres, se julgámos poder libertar-nos da pressão social sobre o nosso corpo e aspeto físico à medida que o movimento feminista se implantava socialmente, temo-nos vindo a aperceber que, na verdade, mais do que nunca, a pressão para nos conformarmos aos padrões de beleza impostos pelo mercado não pára de aumentar e está a ser reconfigurada de tal forma a não parecer uma pressão social, mas sim uma escolha individual de cada mulher. Como tal, neste dia 8 de março, um dia que se quer de luta e reivindicação, julgamos ser vital  refletir sobre o impacto dos filtros de beleza na vida das mulheres e raparigas, muitas das quais já nasceram numa geração em que a internet sempre foi um dado adquirido, assim como as redes sociais. 

Desde o início da pandemia, o recurso a interfaces como o Zoom veio reforçar ainda mais a nossa preocupação exagerada com a nossa aparência física e com o modo como os outros nos vêem. O que antes acontecia apenas em frente ao espelho, agora acontece a todo o minuto nos nossos computadores e telemóveis.  A dismorfia corporal é um problema conhecido por inúmeras mulheres há já vários anos. Trata-se de um transtorno do foro psicológico que, tendencialmente, tem como sintoma a sobrevalorização de características corporais que a pessoa considera imperfeitas. Este é um problema que afeta tanto mulheres como homens e, no entanto, não podemos deixar de notar que a idealização do padrão de beleza feminino sempre foi muito mais rígida, estereotipada e avaliada, conduzindo a impactos profundos na autoestima e na nossa identidade, impossibilitando-nos frequentemente de vivermos as nossas vidas de forma livre e autónoma.

As redes sociais e a maioria das aplicações rapidamente capitalizam inseguranças e vulnerabilidades, disponibilizando os famosos filtros de beleza, disponíveis em aplicações como o Instagram e o Snapchat. O Zoom e a maioria dos telemóveis também já possui um filtro embelezador que se pode ativar ou desativar facilmente quando se utiliza a câmara.  A angústia pré-existente, gerada pelos padrões de beleza, tem vindo a ser agravada pelo boom de filtros como estes, que removem os traços que nos distinguem, marcas na pele, borbulhas, pelos inconvenientes, ou outra coisa qualquer que não esteja conforme um ideal estereotipado. Estes filtros promovem um ideal de beleza que é ao mesmo tempo racializado,  valorizando uma fisionomia mais comum em pessoas do centro e norte da Europa (cabelos, olhos e pele clara) e “abebezado”, evidenciando traços presentes nos bebés e crianças, tais como olhos grandes, nariz pequeno, lábios cheios e um olhar “inocente”. Alguns filtros inclusive denominam-se “baby girl”, “baby face”.  Isto levar-nos-ia a uma outra reflexão sobre a progressiva associação do padrão ideal de beleza feminino aos traços da infância e o que isto sugere acerca da nossa sociedade, tanto na forma como se infantiliza as mulheres como se sexualiza as crianças.

 Não podemos deixar de reparar que estes filtros, dispostos a corrigir o rosto feminino, seguem padrões semelhantes aos da indústria pornográfica. Estes filtros não só veiculam um ideal muito específico e pornificado da mulher, como também aproximam a nossa aparência desse ideal, sugerindo-nos uma imagem do nosso eu-ideal e dificultando a aceitação do nosso eu “humanamente” real. Primeiro, começamos por alterar o tom pele, depois removemos umas borbulhas, disfarçamos umas raízes, quando damos conta estamos a divulgar uma imagem fictícia de nós às outras pessoas que em nada se equipara à realidade, que cria complexos e gera um horror para com interações sociais presenciais. 

Os filtros de beleza têm um efeito semelhante ao da maquilhagem, no sentido em que “disfarçam” e cobrem o nosso rosto. Porém, os filtros têm uma capacidade incomparável de alterar feições e formas, como um cirurgião plástico rápido, livre e gratuito, que nos permite experimentar trinta rostos diferentes no espaço de segundos. É só escolher qual gostamos mais. Por essa razão, o boom nos filtros de beleza é concomitante com um aumento exponencial em cirurgias plásticas.

A ficção científica já anteviu um futuro onde a vida como a conhecemos cessará de existir e onde passaremos a interagir por avatares que escolhemos e fabricamos para nos representarem em sociedade. Hannah Arendt define a literatura de ficção científica como um “veículo dos desejos e sentimentos das massas”. Será esse o movimento da sociedade atual? É esse o caminho que desejamos? Caminhamos para um futuro em que a internet e os seus algoritmos têm o poder de invadir e perturbar o nosso autoconceito, de destruir a nossa singularidade e promulgar ideais estéticos femininos distorcidos que impossibilitam a aceitação dos traços, das imperfeições e das idiossincrasias que nos tornam carismáticas, bonitas e humanas. 

Sabemos que a juventude vive as redes sociais com uma intensidade sem precedentes. A autoestima está, para quase toda a camada jovem, relacionada com os likes, as partilhas, os comentários e o número de seguidores, condicionando vidas e a própria estabilidade mental. Enquanto Mulheres, deixemos de impor esta necessidade entre nós mesmas. Deixemos de julgar estes detalhes que nada dizem sobre quem somos. Sabemos que não é fácil, que todas sentimos a pressão para corresponder a um ideal de beleza, mas temos de nos ajudar mutuamente neste processo.  Neste Dia da Mulher (e em todos os próximos dias do ano), quando se olharem ao espelho ou no ecrã, não procurem ser um filtro. Vamos abraçar a nossa imagem, cuidar da nossa saúde mental e física, normalizar as nossas diferenças e tornar reais as nossas expectativas. Vamos, acima de tudo, aceitar e valorizar que somos seres humanos e não bonecas.

Feliz Dia da Mulher para todas nós que, sem excepção, somos fortes, corajosas e  inteligentes e não  precisamos de qualquer retoque. Precisamos sim da luta organizada das mulheres para colocar um fim a todas as formas de exploração e mercantilização do corpo das mulheres e raparigas. Nós não somos mercadoria.