Num dia quente de abril, na lindíssima cidade do Porto, dei por mim a subir a muito custo a inclinada rampa das Carquejeiras, sob um sol intenso, para chegar à Rua das Fontainhas. Foi só quando cheguei ao topo, exausta da subida e a precisar de me sentar, é que reparei no caricato nome daquela via. Não fazia ideia o que era uma Carquejeira.
No topo desta calçada está um Miradouro com uma bela vista para o Douro onde se entretinham pessoas de todas as idades que pareciam todos ter uma história para me contar.
O que mais me chamou a atenção, apesar de toda a desorientação e exaustão daquela subida extremamente íngreme (300 m, 22.3% de declive) foi uma estátua muito grande em latão de nome “As Carquejeiras”. Para quem não conhece a história das Carquejeiras, vou partilhar convosco o que aprendi nesse dia, para que a sua historia fique um pouco mais conhecida e a sua dor seja um pouco menos ignorada.
As Carquejeiras eram as mulheres que, no início do século XX, carregavam às costas e amarrada à cabeça a carqueja que traziam dos barcos do Douro até à porta de casa das pessoas e às padarias da cidade. A carqueja era uma erva muito utilizada naquela altura como acendalha para cozer o pão da cidade nos fornos a lenha e para o aquecimento das habitações da burguesia.
Estas mulheres, estas heroínas, traziam às costas 50 a 60 quilos de carqueja pela rampa das Carquejeiras todos os dias, fizesse sol ou chuva. Por vezes, mais do que uma vez ao dia, segundo o número de cargueiros que chegasse.
Os barcos vinham de localidades como Melres, Lixa, Pé de Moura, Lomba, Sousa e Sebolido, abastecidos de galhos desta planta. A carqueja descarregava-se no cais e cada mulher começava a fazer os molhos que posteriormente colocariam sobre as costas para a subida pela encosta. A recompensa era muito pouca considerando o trabalho desumanizante – num dia movimentado poderiam arrecadar quinze escudos, em dias com menor procura apenas 6 escudos.
Muitas delas faziam-no com uma criança pela mão ou com uma criança no ventre. Nesta altura, não havia quaisquer estruturas de apoio à infância e a figura paternal era de presença escassa, por isso, as crianças acabavam por comparticipar na tragédia das mães e das avós. Muitas Carquejeiras entravam em trabalho de parto durante a subida e tinham de parar numa casa no caminho para parir. Quem sabe quantas não terão perdido o filho que estava para nascer e que era por quem elas se esforçavam tão horrivelmente em primeiro lugar. Quando precisavam de aliviar a bexiga, uma vez que não podiam pousar a carga no chão, arriscando-se a não conseguir levantá-la de novo, limitavam-se a abrir as pernas no meio da subida a pique (já não usavam cuecas por conta disso).
Ao longo da história, a responsabilidade que recai constantemente sobre a mulher levou-a a submeter-se a verdadeiros trabalhos de escravatura só para poder dar de comer aos seus filhos uma broa seca ao final do dia. Não foram muitos os relatos conhecidos destas mulheres pois muitas delas morreram antes de serem reconhecidas pelo seu trabalho. Algumas Carquejeiras morreram a subir a Corticeira, outras morreram das suas penas ou da velhice.
A certa altura, proibiram os bois de fazer este trabalho pois era demasiado grosseiro e esforçoso para o animal. Por outro lado, as mulheres não tinham escolha e aproveitavam o facto de mais ninguém querer fazer este trabalho. Viviam em profunda pobreza e eram muitas vezes elas que tinham de trazer o pão para casa. Durante anos, acabavam por ser sempre elas a fazer este trabalho, sem nunca serem reconhecidas e a sempre serem ignoradas pelos transeuntes e por todos os que desfrutavam da vida citadina desconhecendo o seu verdadeiro custo sobre as mais pobres e os mais necessitados. As Carquejeiras eram muito facilmente reconhecíveis a subir as ruas, pela curvatura do corpo, sob os molhos de carqueja.
Para além da terrível subida das Carquejeiras, estas mulheres subiam ainda pelos bairros, malnutridas, com os pés sangrentos e as costas quebradas, vender o produto porta a porta a quilómetros e quilómetros de distância do rio e sempre a subir.
Muitas delas sofriam com dores crónicas em todo o corpo e, em especial, nas costas e no pescoço, ao ponto de ficarem deformadas e com lesões perpétuas. Depois do trabalho, com um cansaço profundo e dores latejantes, muitas eram ainda maltratadas pelos maridos, frequentemente alcoolizados.
A estátua que me deu a conhecer as dores destas mulheres deve-se ao trabalho incansável da “Associação de Homenagem às Carquejeiras do Porto”, cujo único objetivo era o de marcar a paisagem da cidade com a memória daquelas mulheres através daquela estátua que nos faz sentir nos ombros o peso desta história.
Houve uma tentativa de denúncia deste drama silencioso das Carquejeiras em 1951, pela Liga Portuguesa de Profilaxia Social, que pediu o cessar deste ofício desempenhado por “desgraçadas, esquálidas e em farrapos”. Porém, a proibição deste trabalho foi sem sucesso na altura e não serviria para as tirar da pobreza, muito pelo contrário…
Nos nossos dias, a história das Carquejeiras é conhecida por muitas e muitos, especialmente pelos mais velhos, que ainda puderam vê-las e testemunhar o seu pesadelo sem escapatória. Quem é apenas visitante no Porto deve lembrar-se que os lugares são as suas histórias e que não podemos conhecê-los sem aprender e compreender quem por lá passou e o que lá experienciou. Se eu, porventura, tivesse sabido quem eram as Carquejeiras e o que se passara naquela calçada enquanto a estava a subir pela primeira vez, não me teria queixado dos pés, nem das pernas, nem do sol, teria antes subido em silêncio enquanto imaginava a tragédia da pobreza e a coragem e a força sobre-humana que marcavam aquelas pedras que eu tinha a honra de pisar.
por Sofia Jesus (Técnica do dMpM4 Centro)