No século XXI ser mulher e artista em Portugal é ainda um desafio. O sexo feminino procura igualdade em todos os setores da sociedade, porém, para receber o mesmo reconhecimento e as mesmas oportunidades não pode ser igual a um homem, tem de mostrar-se superior e imbatível. Por outras palavras, as mulheres são obrigadas a provar o seu valor até um ponto extremo em que seja impossível negar-lhe o posto ou o mérito. Os homens recebem estes sem necessidade de esforços hercúleos. A mulher tem de fazer um trabalho extraordinário, tem de ser a melhor e provar constantemente de que merece estar naquela área e naquele trabalho.
Para além deste desafio que é transversal aos vários setores da sociedade, as mulheres artistas têm ainda de combater o manto de invisibilidade com que a sociedade as cobre. É verdade que as mulheres estão sempre presentes nas artes, mas enquanto objeto de arte e não como sujeito criador da obra. Emoldurar mulheres cândidas, mulheres ricas e pobres, mulheres nuas à beira do rio, mulheres devotas, mulheres apaixonadas tem sido um passatempo dos homens brancos burgueses desde há muitas centenas de anos… Antes de as emoldurarem, esculpiam-nas, o que pouca diferença fazia, pois eram sempre os homens os autores destas grandes esculturas. Os gregos começaram a esculpir, em mármore, grandes figuras humanas onde o homem aparecia jovem e simbolizava o deus da juventude e da plenitude, procurando mostrar ao homem o semideus que ele deveria ser, enquanto a versão feminina representava jovens virgens, graciosas e encantadoras.
Nos nossos dias, as mulheres são as maiores consumidoras de arte, porém, estão a consumir obras de artistas que são 87% homens e 85% brancos. As coleções e exposições mostram uma disparidade evidente – apenas 13,7% dos artistas vivos representados por galerias na Europa e na América do Norte são mulheres. No campo da arquitetura, apenas 7% dos vencedores do Prêmio Pritzker e menos de 3% dos vencedores da Medalha de Ouro AIA eram mulheres. O mesmo se verifica em festivais de cinema e nas composições no universo da música. As obras de artistas masculinos abundam de tal modo que nos poderia causar a impressão de que existem poucas mulheres a dedicar-se à criação, porém, esta suposição está bem longe da verdade. Quase metade (45,8%) dos artistas visuais nos Estados Unidos são mulheres; em média, elas ganham 74 centavos para cada dólar feito por artistas homens.
Será que existe realmente uma tendência para preferir o objeto/produto artístico masculino? Há quem diga que sim e que porém essa tendência tem vindo a alterar-se no sentido de uma nova geração estar a desenvolver uma maior identificação com o olhar do artista, uma maior solidariedade e empatia. Em vez de uma preferência pelo produto artístico masculino talvez se trate apenas de um hábito adquirido por exposição superior a esses produtos em detrimento da exposição a obras criadas por mulheres. Este fenómeno sucede na indústria cinematográfica no que diz respeito à nacionalidade dos filmes e séries que são, sobretudo, de origem norte-americana, tornando a visualização destes em línguas como o francês, o alemão ou o italiano pouco usuais e, por isso, estranhas à maioria dos espetadores. Do mesmo modo, este fenómeno tem vindo a alterar-se, sendo que mais pessoas começam a assistir a produções de outras nacionalidades pelo simples aumento da exposição a estas contribuições, é apenas necessário quebrar o hábito conformista em que nos instalámos. A partir do momento em que nos abrimos a obras e produções feitas por mulheres (assim como a filmes e séries europeias) abrimos uma porta à novidade, à surpresa e à possibilidade de nos maravilharmos com novas técnicas, novas subjetividades e encenações do real.
No mundo da cinematografia em Portugal, este cenário reproduz-se e agrava-se de acordo com o relato de Helena Inverno à revista MAGG. Em Portugal, para uma mulher conseguir evoluir no cinema tem de mostrar que é “muito boa”, com provas concretas de que possui um talento técnico magnífico. “No cinema, entregar um orçamento alto a uma mulher era impossível. E elas não tendo possibilidade, não podiam, a priori, provar a sua validade”. Nos nossos dias é diferente: as mulheres atiram-se aos documentários, a forma de se expressarem artisticamente, sem ser necessário o acesso — aquele que lhes é vedado — aos orçamentos altos da ficção.
Há também uma desconfiança em relação à ideia de uma “mulher artista” que não existe tanto em relação ao homem. O preconceito faz crer que a mulher faz pintura como um hobbie, quando se aborrece ou alterna com o crochet. O homem, por outro lado, apresenta técnica e mestria e transforma o mundo com as suas mãos. Na crença popular, a “mulher artista” é ainda frequentemente perspetivada como louca, instável, histérica. Uma mulher artista é uma coisa perigosa e incompreensível.
Na pintura, o nascimento da categoria “arte feminina” no século XIX (Garb ,1989) foi um nicho particular para abrigar o que era então uma novidade: artistas do sexo feminino que ambicionavam expor as suas criações. Para tanto, as associações femininas como a Union des femmes peintres et sculpteurs desempenharam um papel fundamental ao possibilitarem que as artistas expusessem as suas obras, o que não era de pouca importância tendo em vista as dificuldades que enfrentavam para se formarem e serem avaliadas de modo comparável aos homens. Contudo, esses salões exclusivos estimularam um olhar diferenciado para as suas obras, que passaram a ser julgadas não a partir de valores estéticos determinados pelo campo artístico, mas sim de expectativas sociais ditadas pelas exigências dirigidas ao seu género, como a de serem “doces”, “femininas”, “delicadas”, “graciosas”, etc. No limite, a “arte feminina”” impôs-se então como uma modalidade perigosa na medida em que tanto exibia a diversidade estética das obras feitas por mulheres, quanto as afastava dos debates estéticos centrais. A categoria da “arte feminina” continuou a ecoar no olhar dos críticos na primeira metade do século XX, como expressão de uma subjetividade diversa daquela predominante (a masculina) sugerindo a existência de um estilo comum às mulheres.
Por outro lado, na segunda metade do século XX, particularmente nos anos 60, ocorreu uma importantíssima afirmação das mulheres no mundo da arte. Esta conquista foi marcada pelo abandono por parte da crítica mais esclarecida dos preconceitos de género, por um lado, e uma atitude mais ambiciosa por parte de algumas mulheres, por outro, que conduziram a uma maior equidade entre artistas. As obras criadas por mulheres começaram a ser abordadas pela crítica à luz dos mesmos critérios de avaliação e análise empregues no tratamento das obras criadas por homens, ou seja, sem paternalismos, nem atitudes discriminatórias. Um número crescente de mulheres artistas aposta na sua profissionalização e internacionalização, com bolsas no estrangeiro.
A produção artística das mulheres nos anos de 1960 deixa de pertencer a uma categoria à parte – «arte feminina» –, mas também ainda não se afirma como «arte feminista», não encarnando conscientemente aspetos da agenda política feminista. Teremos que esperar pelas décadas seguintes para este tipo de manifestação se tornar evidente na arte portuguesa, até lá, as mulheres artistas pareciam acreditar ter conquistado uma indiferenciação entre sexos e obras artísticas. Não obstante, permanecia a convicção de que “a mulher, por mais pensadora, artista ou escritora que fosse, devia acima de tudo ser «essencialmente mulher».
Foram precisas muitas décadas para que a mulher conseguisse quebrar alguns dos preconceitos de género e se afirmasse nos campos “do conceptual, do humor, da ironia, da sátira, da crueldade, da fealdade e da inquietação criadora”. Foi necessário recusar o carácter confessional e sentimental da arte, tido como uma das formas tradicionais das mulheres fazerem arte, e a recusa da grandiloquência, entendida muitas vezes como modo masculino de expressão. Nos dias de hoje, na pintura, os quadros de homens artistas ainda são sistematicamente mais caros do que os das mulheres. Um trabalho de um homem vale mais do que o de uma mulher. Todas as estatísticas mostram que em Portugal, um homem ganha mais do que uma mulher e o mesmo acontece em todas as Artes Plásticas.
São necessárias medidas da parte do governo para garantir a paridade na cultura ou devemos privilegiar uma mudança de mentalidades?
Ana Pérez-Quiroga proclama-se a favor das cotas para impulsionar uma primeira mudança, defende que precisamos de uma medida imediata que nos leve à paridade. Helena Inverno, por outro lado, considera que a solução do problema é de “uma complexidade gigante, colossal.” A artista é da opinião que as leis não mudam as mentalidades, o que necessitamos realmente é de uma mudança de opiniões não só em relação às mulheres artistas mas em relação a todos os artistas emergentes, independentemente do sexo. É ao nível da divulgação que acha que se deve dar especial atenção às mulheres.
As mulheres artistas continuam a precisar do nosso apoio e merecem que todas e todos nós recebamos obras femininas em galerias e museus com uma abertura à novidade. Devemos lembrar-nos que para além de todos os desafios que estas mulheres enfrentam, vêem-se ainda a braços com a dificuldade de produzir obras autênticas, num meio dominado pelo olhar e por referências masculinas, cuja influência obriga à conformidade. Habituemo-nos, igualmente, a assistir a filmes e séries realizados por mulheres; apoiemos artistas musicais e artistas plásticas femininas no nosso país e ouçamos as histórias que nos contam… Sacudamos a preguiça de clicar em todas as sugestões imediatas da Netflix ou da HBO, de frequentar os museus e galerias mainstream e ouçamos algo novo!
por Sofia Jesus (Técnica do dMpM4 Centro)