Mahnaz Afkhami _ já não é a última ministra do Irão

Khomeini acusou-a de “prostituição” quando ela ofereceu igualdade de direitos às iranianas. O xá cedeu aos ayatollahs e demitiu-a em 1978. O exílio salvou-a de um pelotão de fuzilamento, mas não lhe devolveu a identidade perdida. Mahnaz Afkhami foi a última ministra do Irão até Ahmadinejad incluir três mulheres no seu Governo. Hoje, aos 68 anos, é um ícone feminista no mundo muçulmano. Esta é a sua história. Por Margarida Santos Lopes

A 1 de Janeiro de 1976 fui nomeada ministra de Estado para os Assuntos da Mulher – a primeira a exercer este cargo no Irão, e a segunda em todo o mundo, depois da francesa François Giroux. O convite chegou num telefonema do primeiro-ministro Amir-Abbas Hoveyda, em Dezembro de 1975, e não foi uma surpresa total..
A minha vida há muito que estava ligada à defesa dos direitos das mulheres. Nasci em 1941, na província central iraniana de Kerman, de uma família tradicional. Quando eu tinha 13 anos, a minha mãe, uma pessoa muito independente, separou-se do meu pai e foi viver para os Estados Unidos. Aos 17 anos, eu segui as pisadas dela e fui trabalhar como balconista para pagar os meus estudos. Quando o patrão me despediu, temporariamente, para me contratar de novo e assim não ter de me pagar merecidas férias, apresentei queixa. Ganhei o processo com a ajuda de um sindicato onde me inscrevera. Convenci-me de que não devemos calar as injustiças, e aprendi o valor da solidariedade.
Em 1967, concluídos os estudos nas universidades de São Francisco e do Colorado, regressei ao Irão, para ser professora de Literatura Inglesa na Universidade Nacional. Juntei-me a outras estudantes e fundámos a Associação das Mulheres Universitárias. Em 1970, fui escolhida para secretária-geral da Organização das Mulheres do Irão (OMI) e, em 1975, quando a ONU instituiu oficialmente o Ano Internacional da Mulher, estávamos no apogeu de uma campanha pela nossa independência numa cultura dominada pelos homens e pela religião.
Realizávamos conferências e seminários. Publicávamos livros e panfletos. Organizámos o primeiro festival de cinema de mulheres no Médio Oriente. Ajudámos a preparar um Plano de Acção Mundial aprovado pela Assembleia Geral da ONU. No mesmo ano, o Irão propôs e contribuiu com dois milhões de dólares para a criação do Internacional Centre for Research and Training of Women. O nosso trabalho tornou mais visíveis as questões das mulheres, e eu estive directamente associada a esse trabalho.
Não fiquei, pois, surpreendida com o convite de Hoveyda. O primeiro-ministro ligou-me quando eu estava numa reunião de direcção da OMI. Afastei-me e fui atender o telefone no meu escritório. Ele pediu-me segredo, até eu tomar uma decisão e não pude satisfazer a curiosidade dos meus colegas.
Dias depois, fui apresentada como ministra ao xá Mohammad Reza Pahlavi e à sua mulher, Farah Diba. O imperador congratulou-me e realçou a importância do papel das mulheres no desenvolvimento. A imperatriz desejou-me felicidades.
Na altura, ninguém sabia o que uma ministra para os Assuntos da Mulher deveria fazer. Actualmente, há mais de 100 titulares deste cargo, mas nesse tempo era apenas Françoise Giroux, e o seu mandato foi breve. A ausência de um modelo permitiu-nos definir a nossa própria agenda e conceptualizar a postura que considerávamos adequada, de maneira a enfrentar pouca oposição dentro do Governo.
A resistência dos homens
Havia pelo menos 12 ministérios e agências governamentais que lidavam de perto com questões das mulheres, designadamente, os da Agricultura, da Educação, do Planeamento e Orçamento, da Saúde e Economia. Sugeri que fosse criada uma comissão, chefiada pelo primeiro-ministro, na qual participariam aqueles ministérios. A comissão reunir-se-ia uma vez por ano, e eu encontrar-me-ia uma vez por mês com altos funcionários, para avaliar a situação. Foi interessante ver o nível de resistência – talvez nem fosse tanto resistência, mas sim falta de consciência para a possibilidade de as mulheres serem líderes.
Por exemplo, o homem que distribuía os documentos, a princípio, não me identificou a mim, uma jovem, como presidente da mesa, e foi entregar os papéis ao homem que na sala era o mais velho e com mais cabelos brancos. Outro exemplo: o guarda que saudava os ministros à entrada para o gabinete do chefe do Governo demorou vários dias a perceber se tinha ou não de saudar uma mulher – mesmo sendo ela ministra.
Foi, apesar de tudo, um período muito produtivo. Introduzimos horários de trabalho flexíveis para as mães e salários com benefícios iguais para as trabalhadoras com crianças pequenas; abrimos centros para os filhos nos locais de emprego; aprovámos uma nova lei da família que dava direitos às mulheres iguais aos dos homens – em particular no divórcio e custódia dos filhos; e ajudámos várias mulheres a chegar a cargos de topo no Governo.
À excepção, talvez, da Tunísia, nenhum outro país muçulmano aprovou, nos últimos 30 anos, legislação tão liberal como esta. Para os mullahs no Irão, as leis que deram mais direitos às mulheres eram piores do que a reforma agrária, que lhes retirou privilégios.
A turbulência começou no final de 1977 e agravou-se em 1978. É certo que muitas mulheres participaram nas manifestações contra o xá, mas o que elas exigiam era mais liberdade, mais igualdade e mais justiça. Não previam que grupos islâmicos, os principais instigadores e apoiantes do ayatollah Khomeini, acabariam por instaurar o único governo teocrático do mundo. Não previram que uma das primeiras decisões de Khomeini – ainda antes de haver uma Constituição ou um governo – seria abolir a lei da família, tolerar a poligamia, segregar os espaços públicos e tornar o hijab (véu) obrigatório. Em Março de 1979, um mês depois da revolução, as mulheres realizaram as primeiras manifestações contra os ditames islâmicos.
Eu tinha ido a Nova Iorque, no final de 1978, para negociar os termos da criação, na capital iraniana, do United Nations Research and Training Institute for Women. A viagem deveria durar duas semanas, mas as negociações demoraram mais do que se esperava e, no final, a situação degradara-se tanto no Irão que o meu regresso teria sido perigoso.
As acusações do ayatollah
O xá cedeu aos ayatollahs e demitiu-me. Fechou o meu ministério, julgando que assim parava a revolução. Khomeini emitira uma fatwa (édito religioso) em 1963, quando as mulheres se tornaram emancipadas, decretando que qualquer actividade política por parte delas era equivalente a “prostituição”. As acusações de “corrupção na Terra” e “guerra contra Deus” eram dirigidas contra todos os que o sistema considerava serem opositores dos princípios da República Islâmica.
Eu e Farrokhroo Parsa, designada ministra da Educação em 1968, fomos as primeiras acusadas daquelas ofensas. Sob estas acusações, um pelotão de fuzilamento executou a minha amiga e mentora, em 8 de Maio de 1980. Ela já não estava no Governo, mas estava no país. Eu tive a sorte de estar fora do alcance dos revolucionários.
Na prisão, a senhora Parsa escreveu aos filhos: “Estou disposta a receber a morte de braços abertos em vez de viver na vergonha e ser forçada a usar o véu. Não vou ceder aos que esperam que eu lamente 50 anos de esforços pela igualdade entre homens e mulheres. Não estou disposta a usar o chador e recuar na história.”
Farrokhroo Parsa deixou uma carreira na Medicina para se dedicar à educação feminina. Foi professora de Biologia num liceu de Teerão. Vinha de uma família de activistas. A sua mãe, Fakhr-e Afagh, fundou um dos primeiros jornais feministas e foi forçada a um exílio interno pela sua militância.
Uma das primeiras mulheres eleitas para o Parlamento iraniano, em 1963, Farrokhroo Parsa foi ministra da Educação durante vários anos. Quando eu assumi a direcção da OMI, ela fez-me uma visita de cortesia. Pedi-lhe apoio na revisão dos textos escolares para que melhorassem a imagem das mulheres. Ela disse-me: “Prometo fazer o que puder, mas não se esqueça que eu sou ministra da Educação e não ministra para as mulheres.”
Estas palavras mostraram-me que, para mudar a condição das mulheres, era necessário haver um cargo governamental com autoridade. Ela formou mesmo uma comissão para rever os livros escolares, e pediu conselhos à OMI – e esta foi outra das acusações no seu julgamento “revolucionário”.
Eu e Farrokhroo Parsa fomos as únicas ministras do xá, embora houvesse outras mulheres activas em todas as áreas, na política, nas artes, nos negócios. Havia, por exemplo, três vice-ministras, das Minas, da Indústria e do Trabalho. Havia governadoras, embaixadoras e deputadas.
O exílio nos EUA
Depois de perder o cargo, fiquei nos Estados Unidos porque estava familiarizada com a língua e a cultura. Vivo em Maryland com o meu marido, Gholam Afkhami, cientista político que acaba de lançar o livro Life and Times of the Shah. O meu único filho, Asef Babak, é analista financeiro e reside em Nova Iorque com a sua mulher e os meus dois netos. Já não tenho mais família próxima no Irão.
É claro que a identidade é tudo na vida de um exilado. O Governo revolucionário iraniano ficou com a minha casa, os meus livros, as minhas fotografias, tudo o que me pertencia. A maior perda foi a da identidade – o sentido de quem sou. Quando somos transplantados para um cenário diferente, tudo é posto em causa ou acaba perdido.
Eu tive sorte de, através do meu trabalho no Irão, ter estabelecido uma boa rede internacional de mulheres activistas. Escrevi um livro chamado Women in Exile, que é a história do meu exílio e as histórias das mulheres de 12 países que, tal como eu, acabaram por ser exiladas. Elas levaram-me a trabalhar com o movimento internacional de mulheres e esse trabalho permitiu-me manter a minha identidade como feminista e activista dos direitos humanos.
Em 2000, fundei em Washington a Women’s Learning Partnership for Rights, Development and Peace (WLP). Sou presidente desta ONG e directora executiva da Foundation for Iranian Studies. A WLP é uma parceria de 20 organizações, a maioria em países predominantemente muçulmanos. Damos cursos de liderança e gestão, adaptados em particular às culturas e línguas dos países onde trabalhamos. Já publicámos os nossos trabalhos em duas dezenas de línguas. Um dos países é o Irão. Ajudamos a que as vozes das mulheres iranianas sejam ouvidas pelo mundo.
As novas ministras
A decisão do actual Presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, de nomear três ministras – Marzieh Vahid Dastjerdi (Saúde), Fatima Ajorlou (Assuntos Sociais) e Sousan Keshvarz (Educação) – é um sinal da proeminência e da visibilidade das mulheres nas últimas eleições e nos protestos pós-eleitorais. Neste sentido, é um sinal positivo. No entanto, dado que as opiniões dele e das que ele escolheu para ministras são reaccionárias, não creio que tentarão ou serão capazes de trabalhar em benefício das mulheres.
Dastjerdi é uma forte apoiante da segregação nos hospitais e centros de cuidados médicos. Ajorlou é uma defensora do chador. As três têm uma postura ultraconservadora em relação ao papel das mulheres na família e na sociedade.
Apesar de tudo, estou confiante. Em termos de acção política, as mulheres iranianas têm demonstrado uma extraordinária maturidade e sofisticação. A campanha que lançaram de recolha de milhões de assinaturas para reformar as opressivas leis da família assentou num movimento de base, democrático e não-ideológico.
Activistas foram de porta em porta, de cabeleireiros a mercearias, onde quer que as mulheres se encontrassem, para explicar as leis e ouvir as suas opiniões. Construíram uma vasta rede, usando SMS e e-mail, o Twitter e o Facebook. Chegaram a acordo sobre uma série de reivindicações. Convenceram os candidatos às eleições presidenciais de Junho da razão dos seus clamores e mostraram o poder de estarem unidas.
Essas mulheres estão no coração do movimento pela mudança. Não tenho dúvidas de que ganharão a batalha pela liberdade e pela justiça. Enfrentam violência e opressão num futuro imediato. Mas a história está do lado delas.

A partir de uma entrevista por e-mail com Mahnaz Afkhami e da sua biografia oficial em http://learningpartnership.org
Fonte: http://jornal.publico.clix.pt/noticia/27-08-2009/na-primeira-pessoa-17643763.htm

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